quinta-feira, 31 de maio de 2012

Tenho à minha frente a chávena de café que trago sempre do bar da dona C. para a minha secretária, a largar o aroma de café pelo corredor e sala de baixo que me separam daquele espaço. É um ritual que faço duas vezes ao dia desde que me mudei para este gabinete. De manhã e de tarde entro no edifício, pico o ponto, dirijo-me a aquela divisão que insistem chamar bar da Dona C., peço-lhe o café ao que ela, com mais de 80 anos, pergunta quase sempre se quero “curta ou normal?” porque sabe que gosto de baralhar rotinas. Ponho o açúcar, pago e trago o café para aqui deixando para trás o papaguear de quem ali está. Atravesso o corredor, entro na sala, cumprimento quem cá está, subo as escadas em caracol para a mezanine, Pouso a chávena no lado esquerdo da mesa, largo as tralhas e ligo o computador enquanto mexo lentamente com a colher. Desde que faço isto deixei de beber café a escaldar. É o tempo perfeito para diluir o açúcar e ficar à temperatura perfeita para ser saboreado. Enquanto o bebo, vejo os mails, no caso de ser de manhã vou acordando, organizo as coisas e dou uma vista de olhos nos meus Google readers. É também um tempo bom para aguentar e esperar pelo segundo café (bebido algures na hora seguinte e já ao balcão) para fumar um cigarro, quase sempre sentado ou encostado ao murete de baixo da laranjeira em frente à igreja. Sou um gajo de rituais. Gosto destes rituais.


Mas o que gosto mais dos rituais é o ritual de mudar de rituais quando já os saboreei. E revivê-los de vez em quando. Os meus rituais marcam épocas e estados de espírito concretos. E raramente são os mesmos ao longo dos tempos.


Hoje foi a última vez deste ritual. A Dona C. lamenta a minha saída, diz que gostava que eu ficasse e pergunta se volto. Está morta por saber o que vou fazer quando sair daqui. Pouca gente sabe e já ouvi dizer que andam a fazer apostas. Digo-lhe que não sei mas que ainda nos vemos porque venho visitá-la e beber um café. Ao balcão. Ela diz que se eu voltar daqui a um ano pode já não estar cá. Que é assim mesmo. Mais dia, menos dia deixa de cá estar e que vai servindo os cafés durante o dia e vendendo o pão no mercado ao fim de semana para se manter ocupada e animada enquanto a morte não vem.

Penso nisso enquanto bebo o café. Sei que daqui a um ano pode estar tudo diferente. Sei também que, há semelhança do que se passou nos últimos anos, poderá estar tudo mais ou menos na mesma. E que, há semelhança do que tem acontecido, a haver mudanças aqui, estas raramente são para melhor.

Não quero pensar muito nisso do como serão as coisas daqui a um ano. Logo se vê. Daqui a pouco, antes de fumar e quando o bar estiver vazio vou lá beber mais um café, ao balcão, despedir-me da Dona C. com dois beijos e dizer-lhe um até já. Sendo que esse até já poderá ser até sempre.

Vou despedir-me de algumas pessoas. Outras se as encontrar pelo caminho também me despeço e desejo boa sorte. Outras nem isso porque não me interessam e aqui há demasiada gente para estar a meter tudo no mesmo saco. Há pessoas aqui das quais não me despeço. Sei que farão sempre parte de mim e da minha vida e que mais semana menos semana, mais mês menos mês, ou mais ano menos ano, estaremos a almoçar ou a beber café algures fora daqui. Ou trocar mails sobre o que mudou e não mudou e se a dona C. continua do alto do seu metro e meio e 80 e tal anos, a servir cafés entre protestos e semi-rabugisses.

Logo se vê.



sexta-feira, 25 de maio de 2012

Em forma de equilibrio de dois posts gigantes, densos e desgastantes



... tenho a dizer que daqui a uma semana já não estarei a trabalhar aqui.


Ainda não estou em mim.
 
M.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Malta - O resto.


O resto, bom. Foi estranho.

O mar manteve-se partido da tempestade mais um dia. Ondas desencontradas, incertas e mal humoradas mas a acalmarem com o passar do tempo.

Percebemos entretanto o que se passava com o piloto automático e leme. Uma cena qualquer do hidráulico que não sei explicar muito bem mas que se resumia a não compensar para um dos lados. E o piloto não sabia lidar com isso. Nós sabíamos um pouco mais mas não muito mais. Era uma questão de tentar levar o mais a direito possível. O motor deu-lhe um chelique qualquer e não voltou a funcionar como deve ser. Começou a falhar depois da tempestade e essencialmente em cada 5 segundos ia quase a baixo e voltava a tentar acelerar, o que garantia a fabulosa velocidade de 3 ou, nos momentos de loucura, 4 nós. Para se ter uma ideia 3 nós é a velocidade máxima em que se navega nas marinas. E o vento caiu. Demasiado.

O P. passou uma data de horas enfiado no buraco do motor, sempre que havia um pouco de vento para irmos à vela, a desmontar aquilo tudo para ver se descobria o problema. Fiquei a perceber um pouco de mecânica com estes exercícios práticos. Como havia pouco vento e motor, o piloto não respondia bem por isso fiz também uma data de horas de leme e navegação à reagata, ou seja atentamente a aproveitar o melhor possível as bufas de vento, enquanto só via os pés do P. que estava enfiado no buraco do motor.

De resto, ia-se naquele tuc tuc tuc podre e arrítmico por ali fora. Valeu um número infinito de golfinhos que inúmeras vezes nos visitaram e acompanharam. Pode ser que estivessem a gozar connosco e espalharam pelas redondezas que valia a pena visitar-nos. Prefiro pensar que estavam solidários. Ou sentiram-se atraídos pelos barulhos estranhos do veleiro no qual, para além do motor, se incluía o baque-baque do patilhão (rebatível) que acontecia porque na doca seca alguém se esqueceu de pôr os calços de madeira que evitariam que balançasse.

Não se descobriu o problema no motor nem se conseguiu arranjar o leme. Rumámos a Cagliari, Sardenha para reparações. A dado momento conseguimos ter rede para darmos notícias para casa e o dono do barco. Percebemos que estava tudo um bocado em pânico por já terem passado demasiados dias sem notícias. Achavam que estaríamos a chegar a Malta por aquela altura. O dono do barco já tinha um mail preparado para enviar às diferentes capitanias e lançar um alerta à nossa procura.

Serenadas as hostes lá na terra, dei um mergulho retemperador no mediterrâneo que ainda não tinha a temperatura quente que conheço mas que soube pela vida. Bebemos uma cerveja para celebrar o fim daquele etapa, depois outra e mais umas quantas e fizemos um belo jantar que comemos cá fora, com a uma garrafa de tinto que fez todo o sentido abrir naquele momento. Ao anoitecer estávamos a umas 20 milhas de cagliari. Ou menos. Atracámos na marina já dia alto, para o que ajudou ter desaparecido o vento (um cliché quando chegamos a algum lado à vela) e passada a barra, por ser noite, nos termos enganado e ido para o lado do porto em vez da marina. É que a plotter não tinha as cartas do mediterrâneo, as cartas em papel não têm esse nível de detalhe e não sacámos essa informação da net quando saímos. Não é fácil entrar num porto desconhecido à noite. O motor parecia que ia dar o peido mestre a qualquer momento e chegámos a pensar fazer turnos dentro da barra. Mantinha-se mesmo assim o sentido de humor. A alternativa era desatar à chapada um com o outro ou amarrar aquela barco amaldiçoado a qualquer coisa e lixarmo-nos para aquilo tudo.

O armador tinha marcado um lugar na marina para nós e pedido um mecânico. Fomos a terra beber um café e tratar das formalidades. Depois descansar enquanto o mecânico não vinha. O P. ficou a dormir. Eu dormi um pouco, calcei o chinelo e fui perder-me para o centro da cidade. Voltei ao barco à hora marcada. O mecânico só podia no dia a seguir. Duche retemperador, jantar obscenamente caro que achámos que o armador nos devia num restaurante ali perto. Um dono de restaurante impecável que nos acolheu e serviu uma data de rodadas por conta da casa. Cafés e limoncello’s uns atrás dos outros na esplanada. Apresentam-me algo ainda melhor que limoncello: o Mirto. Fico fã e insisto em provar várias vezes para confirmar. Combinamos voltar na manhã seguinte para levarmos pão fresco na viagem, água e duas garrafas do que andámos a beber.

O capitão volta para o barco. Não consegue descontrair enquanto não tiver o motor arranjado e perceber o que é. Lembra-se de numa situação semelhante um mecânico uma vez lhe dizer que o problema era falta de juntas. Ele pergunta: juntas? O mecânico confirma: Sim. Juntas essa merda toda e jogas fora.

Eu vou perder-me nos cantos escuros e imprevistos da noite de Cagliari. Volto de manhã. Satisfeito e cansado.

O mecânico no dia a seguir também não vem à hora marcada. Diz que só á tarde. O P. irrita-se e reinicia pela enésima vez desmontar o motor. Quando acordo acha que conseguiu resolver o problema. Trabalha certinho e manso. Óptimo. Vou buscar as provisões ao restaurante, beber um último café, despedir-me daquela malta que nos acolheu bem, tomar um duche e voltar para o barco. Largamos com optimismo. É 6ª feira ainda com bastante dia pela frente. Com sorte, a motor, chegamos no sábado à noite a Malta. Nada mau.

O vento está bom, 20 nós de popa. O motor também. Içamos velas e voltamos a ter o prazer de fazer médias acima de 5 nós. Durou pouco. Umas duas ou 3 horas. Ainda com terra à vista o motor falha. Depois o tal vau que nunca mais nos lembrámos partiu-se de vez. O brandal estava solto e o vau ali pendurado. Desanimamos. Decidimos voltar para trás. O vento carrega só para chatear. 25 nós vento pela proa mais corrente, só de genoa e motor soluçante. Ah, e a plotter deixou de marcar a posição de GPS. Atracamos na marina a passar das 8 da noite. Jantamos a bordo. O capitão fica a bordo. Eu volto às ruas de cagliari, desta vez num registo mais calmo. Volto a um bar onde tinha estado na véspera. O dono, um porreiro, vê-me e pergunta-me: hey! Não devias estar a caminho de Malta? Sorri e disse que pelos vistos Cagliari quer-me aqui mais uma noite. Coisa que não me chateia nada. Não me deixou pagar nada e isso soube bem. Ficou prometido que se tivesse lá na noite de sábado, pagaria eu as rodadas.

Voltei a horas decentes ao barco. Não só por vontade mas porque estava na época de uma qualquer coisa religiosa importante na ilha que envolvia passear um santo pelas terras, sendo que 6ª feira era o último dia e o dia de regresso do mesmo a Cagliari. Havia um certo aroma de conservadorismo no ar e a noite estava calma. Era uma boa noite para dormir.

De manhã cedo disseram-nos: “não há mecânicos ao sábado”. Olhámos um para o outro e pensamos… ok. Sábado e domingo aqui, 2ª feira sabemos lá se o mecânico aparece ou se existe mesmo essa figura mítica. Decidimos arranjar o brandal e vau e partir. Ao som de Bandarra e depois Jorge Palma que berram do meu portátil sobe-se ao mastro, desmonta-se aquilo, o P., que é uma espécie de Macgiver, inventa ali uma peça de encaixe elaborada e eficaz, volta-se a montar a coisa e dá-se carga como deve ser nos brandais, coisa que devíamos ter feito antes de sairmos de Portugal, culpa e negligência tanto de quem fez a manutenção do barco e nossa por não o termos confirmado. Aproveitamos e fazemos outros arranjos secundários. O motor nem lhe mexemos.

Estamos o dia todo naquilo. Comemos, tomamos banho, bebemos de novo o último café e ao fim da tarde de sábado largamos com a chuva a cair. O motor não demora a voltar ao seu ritmo mas agora ao menos podiamos ir á vela. O piloto automático também mostra má cara a maior parte do tempo

Chegamos a Malta a meio da manhã de 4ª feira, já com o nosso vôo de regresso perdido.
 Depois de duas noites de relâmpagos e trovoada, uma das quais em cima de nós onde amaldiçoei o leme de cada vez que tinha de vir cá fora ajustar o rumo e irritei-me a sério com o barco. Borrei-me um bocado e a dado momento não queria saber se íamos na direcção da Tunísia ou China enquanto os relâmpagos não saíssem dali.
Depois de um momento surreal em que ía eu ao leme com 4 nós de vento, começam a entrar 7 a 10 nós de vento, vou todo contente içar a vela grande e abrir a genoa a pensar: agora é que é! O vento vinha com uma nuvem baixa com aspecto de poucos amigos. E agora é que era: Em menos de 10 minutos instalam-se confortavelmente 40 nós. Chamo skipper e rizamos as velas. Dura uma hora naquilo, depois acalma e fica-se pelos 20 a 25.
Depois de uma manhã inteira a percorrer a costa com 1 a 2 nós de vento para chegarmos à marina.

Foi um transporte pouco descontraído. Com pouco descanso. Com poucos momentos de descontração e leitura, fosse pelo vento em excesso ou pela falta dele. Foi uma viagem estranha. Aprendi bastante. Venho com calos nas mãos de tantas horas ao leme.Acho que cresci.

É um texto demasiado longo, eu sei. Mas a viagem também o foi.
Ainda não sei se o faria de novo. Acho que sim.

M.

Malta - Tempestade Imperfeita

Não sei porque ando a adiar escrever sobre a viagem ou mesmo o resto. Acho que ainda estou a digerir a coisa. E com mais vontade de fazer coisas do que propriamente falar delas. De qualquer maneira foi isto:


Percurso sem história até Gibraltar, onde parámos a meio da manhã para comprar tabaco (muito), beber um café, comer um gelado, atestar o depósito do veleiro mais 6 jerricans que nos deveriam garantir a chegada a Malta sem escalas. Até lá deu para perceber que o veleiro era mesmo um chaço mas o motor aguentava-se bem e garantia uma média de 6 ou 7 nós o que era mais que suficiente. O piloto automático nem sempre se aguentava bem mas não ligámos muito. Havia tempo para ver o que se passava.

Estivemos menos de duas horas em Gibraltar, espreitámos as previsões para os próximos dias que foram confirmadas pelo contacto que tínhamos em terra (lá na terra): carregava um bocado de vento (20 a 30 nós) nos dois ou três dias seguintes e depois desaparecia o vento e o pouco que havia seria de proa. Como nos disseram, “é aproveitar agora” para fazer milhas.

Já estava mais recuperado dos estragos de uma deliciosa noite de despedida em terra. E optimista. O ambiente a bordo estava bom, tínhamos despachado uma cabeça de leitão assado à largada, os turnos eram longos e descontraídos e o mar era nosso.

Originalmente tínhamos pensado subir e seguir num arco ao largo de Ibiza, Las Palmas, Sardenha e Sicília, tanto para evitar a costa no norte de África como para estarmos mais perto da costa “civilizada” do que da outra caso acontecesse algo que nos obrigasse a ir a terra. Não foi nada disso que aconteceu. O vento e mar estavam favoráveis, havia que aproveitar o vento que vinha, o motor não gastava muito e assim decidimos ir directamente para Malta num rumo a apontar algures entre a Sardenha e Sicília e logo se via se precisávamos de parar numa destas para abastecer. Tinha a esperança que sim.

Na manhã do dia seguinte o horizonte estava estranho. Pensei: isto vai carregar. Havia algum vento e mar com vaga pequena, dava para ir navegando bem entre motor e vela. A meio do dia o vento fixava-se nos 20 a 25 nós. Um pouco mais tarde nos 25 a 35. O mar crescia com o passar das horas. Sempre a favor, com ondas de 2 a 4 m. Íamos a surfar. O piloto automático já não se aguentava e o leme tinha que ir na mão. Ia eu num misto de medo e excita da adrenalina. O vento começa a tocar nos 40 nós. Desço uma onda a 10 nós e qualquer coisa de velocidade que nunca mais acabava mas mesmo assim não tive tempo de ver o quanto era o qualquer coisa. Começava a sentir-me desconfortável porque o barco tinha reacções estranhas e eu não o controlava bem. Era altura de passar o leme a quem percebe do assunto. Tínhamos recolhido a genoa. Mas estávamos contentes. Afinal as previsões batiam certo e assim chegávamos a Malta num instante. Eventualmente em menos de uma semana, a tempo de passar lá o fim de semana. O voo de regresso seria só na 4ª feira seguinte. Perfeito.

Numa cambadela parte-se uma alça da retranca. Muda-se a escota para a outra. Esta parte-se também. Improvisa-se uma alça com um cabo. Pelo meio rasga-se um pouco a vela grande. Nada de grave. Estava só “esfuracada” mas sem abrir mais. Mais para o fim da tarde as refregas tocavam cada vez mais vezes nos 40 nós. Tudo bem. Aguenta-se bem, o skipper é experiente e o barco ainda não se queixou. E mais tarde ou mais cedo aquilo haveria de passar. Provavelmente mais cedo. O skipper também não percebe bem algumas reacções do veleiro. Pode ser pano a mais. Não temos o rizo da grande passado. Já se vê. Vamos brincado com o acontece.

Depois de outra cambadela ouve-se um clack, vejo-o a olhar para cima com um ar preocupado e a dizer “acho que vamos ter problemas com o mastro”. O vau de bombordo estava meio partido e a querer soltar-se. Camba-se a grande outra vez para não forçar e ficamos a olhar para aquilo. Partir-se um mastro é grave e é coisa que não quero experimentar. Decidimos arrear a grande. É sempre nessa altura que o vento carrega e as ondas crescem. Estava estável nos 40 nós. Com aquele vento e mar ir ao mastro arrear a vela é coisa para não ser uma experiência agradável. Espera-se que acalme um pouco, aproa-se o barco ao vento e às ondas, faz-se a coisa com a calma e concentração possível e não corre mal. Fuma-se um cigarro a seguir com uma mini para descontrair o coração que entretanto disparou.

O vento começa a tocar nos 45 nós com frequência e as ondas não param de crescer. Espera-nos uma noite longa. A partir daí sento-me ao pé do skipper e dedico-me às funções “apoio moral” e “apoio técnico” que consiste basicamente em acender cigarros, abrir cervejas, ir buscar comida e água, afinar a genoa, ir lá dentro buscar comida, ver o nível de água nos porões, apanhar as coisas que vão caindo das prateleiras com as inclinações repentinas do barco, incluindo um velho portátil que lá estava que fez um voo directo da mesa de cartas para a cozinha, marcar a posição na carta, esperar ordens e dizer parvoíces enquanto ele controla o bicho. Oiço com frequência uma espécie de alarme baixinho que não percebo de onde vem e que o P. não ouve. Começo a achar que ouvir campainhas pode não ser bom sinal. Passado um bocado percebo que o som vem do anemómetro que está ao meu lado e que toca o alarme de cada vez que o vento passa dos 45 nós. Tocou bastantes vezes. Anoitece.

Apanhamos uma onda mais entusiasmada nas costas e pouco depois enfiamos o barco de lado numa outra que trouxe água até ao joelho no poço. Rimo-nos, mudo para a roupa e botas de mar. Pego no leme para o skipper fazer o mesmo e cada segundo que ali estou parece uma eternidade. Supomos que as ondas andam nos 6 a 7 metros mas está escuro, não queremos exagerar e isso não interessa para o efeito. Estão grandes. Devolvo o leme a quem sabe. Só volto a tocar no leme às 2 da manhã, quando o P. já não aguentava mais de dores nos calcanhares e vontade de mijar. Sim, fiquei a saber por experiência própria que o que fica a doer mais a fazer leme num veleiro é a porra dos calcanhares… A dado momento parece que nos estão a espetar agulhas e ali, com certos mares e ventos não há outra opção senão aguentar e ir em pé. Peço-lhe para mijar ali no poço em vez de ir lá dentro e vou tentando gerir o caos. Ele faz-me a vontade, senta-se, descansa um pouco e volta ao leme. Há um momento em que aquilo perde a piada e se pensa: “Esta merda não pára? Não acaba?” Começa-se a pensar que se está mesmo no meio do mediterrâneo, já não vemos nenhum navio há umas horas valentes e que nada indica que o temporal acalme. Antes pelo contrário. E pensa-se e se isto continua um dia. Ou dois. E o mar sempre a crescer? Sabe-se que mais tarde ou mais cedo o cansaço vai vencer o skipper e não se quer ser a opção para ir para o leme já que a probabilidade de fazer asneira é grande. Pensa-se que o cenário já esteve melhor, o skipper com um ar menos preocupado, cada clack vindo do mastro e do estai inquieta, e sente-se pela primeira vez medo que a coisa não corra bem. Começamos a questionar a nós próprios como é que se abre uma balsa e se salta lá para dentro naquele mar. Just in case. Fumam-se cigarros e o silêncio das vozes ocupa espaços cada vez maiores. Deixa-se de ligar às paredes de mar que se formam nas costas do P e que ele não vê. Ali não há merdas, adereços nem blufs e ficamos só o que somos. Pensa-se que para ele seria bem mais fácil e útil ter ali ao lado alguém que se sentisse mais à vontade para ir fazendo turnos ao leme e nesse momento sentimo-nos relativamente inúteis. Amaldiçoa-se a inexperiência. Questiona-se se somos feitos para aquilo.

Depois pensamos que não adianta de nada estar a pensar isso nesse momento. Há um navio que aparece no meio daquele caos, contorna-nos de perto, anda ali um bocado ao nosso lado num rumo parelelo como se a ver se está tudo bem e segue caminho. E saber que ali perto, ao alcance do VHF há um navio que nos viu, parecendo que não mas descansa bastante. Sente-se um sorriso interior e o ambiente alivia um pouco. Rimo-nos de novo.

Aquilo começa a ameaçar acalmar. Não sabemos se vai recuperar o fôlego com o nascer do dia ou se acalma mesmo. O vento baixa lentamente e volta para os 30 a 40 nós. Vou eu para o leme. O P. está exausto. Indica-me a estrela brilhante que aparece de vez em quando entre as nuvens e que lhe serve de guia alinhada com o estai e o mastro. Sigo-a fielmente porque garante que vamos no rumo certo e mais importante de tudo, que vamos com as ondas. Sem nos metermos com elas. Acho que nunca fixei tanto uma coisa. Acho que nunca amei tanto um ponto de luz. Depois de estar ali um bocado ao meu lado P. vai dormir. Antes disso ponho o arnês para me sentir seguro. Volta e meia aparecem não se sabe de onde umas ondas de través que rebentam no barco e baralham tudo. Malditas ondas de lado. São umas cabras com p. Malditas nuvens que insistem em tapar a bendita estrela quando é preciso corrigir rumos. Com as horas tenho mudar de estrelas que Ela está no topo do mastro e já me dói o pescoço. Nunca mais amanhece. Nunca mais baixa o vento para valores civilizados. O barco continua a ter reacções estranhas. E aquilo cansa.

Ganho coragem para acender o primeiro cigarro sozinho. Depois outro. Tento aliviar a tensão em que vou. É um desgaste físico desnecessário. O céu começa a clarear. E já se vêem as ondas e para onde vamos. O sol nasce atrás das nuvens, tudo parece um pouco melhor apesar de a fúria das ondas estar visível, não se saber se é melhor ver ou estarem tapadas no escuro e quer-se acreditar que o pior já passou e não volta.

Passam-se umas horas nisto, resiste-se uma data de vezes à tentação de chamar o P porque não queremos mesmo estar ali mas pensa-se que é melhor aguentar agora para o caso de voltar a carregar ele estar descansado. É um potencial mal menor. E quando não se aguenta mais, berra-se o nome dele para o acordar e vir substituir antes que se faça alguma asneira. O pior já tinha passado.

E vou dormir.



M.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

8 e 9








Não me borrei mas pouco faltou.

Uma tarde e uma noite até ás 2 ou 3 da manhã nisto um dia depois de sairmos de gibraltar bem a meio do Mediterrâneo.

Só passou para baixo dos 25-30 nós a meio do dia seguinte.


M.

Um el Faroud



Prenda de aniversário de mim para mim.










Não era suposto estar ainda em Malta no meu aniversário. Nesse dia deveria estar em portugal há uns 2 ou 3 dias, provavelmente no comboio a caminho de Lisboa para jantar com a familia e beber um copo com amigos.

Não foi o caso e a estar em Malta, há que aproveitar.

Acordar inesperadamente cedo no quarto de hotel com o ressonar do skipper. Ocorrer e decidir no momento procurar um centro de mergulho algures ali perto em alternativa a tentar dormir mais um pouco. Afinal era o meu aniversário e último dia ali.

Encontrar um bom centro de mergulho à primeira, falar com a dona simpática e profissional que me diz que vou mergulhar sózinho com o guia. Aparecer um guia gordo na casa dos 40 com ar bonacheirão mas pouco motivador e achar que é com ele que vou mergulhar.

Afinal fui com uma guia gira e algo louca, inglesa que anda a viajar pelo mundo e ali vive à cerca de 2 anos, que sabia o que estava a fazer e doseava convenientemente o flirt “profissional” para manter o cliente com um sorriso na cara sem no entanto convencer-se que era convincente o suficiente para ser levada a sério. Um mergulho nos limites teóricamente inadmissíveis que só aconteceu porque ambos sabíamos o que estávamos a fazer e ninguém gastava muito ar. Nem entrava em stress.

uma carteira perdida junto ao carro dela, que chegámos a pensar que tinha sido roubada enquanto nos despiámos. Um gelado e café cheio de risos e parvoices acompanhado de um saboroso cigarro com vista para um mar soberbo.
Dificilmente conseguiria fazer melhor.


Memorável. Bastante perfeito.

M.

De volta

Desde sábado.

Ainda a recuperar.

M.