quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Emigrante regressa em Agosto

Entre falta de acesso a internet e um portátil defunto isto deixou mais uma vez de ser escrito. E mais uma vez aconteceram demasiadas coisas para escrever aqui.
Demasiadas para tentar sequer um resumo agora.

Fica só um voltei a Portugal um ano após ir para o Panamá, quase atravessei o oceano atlântico todo e agora tenho um portátil de novo por isso já posso manter isto.

Até já.

M.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Shelter Bay - Bocas del toro II

O motor do Arctic aquecia se muito tempo acima das 2000 Rpm. Foi isso que o fez estoirar naquela maldita travessia do canal. Chris o tal mago não estava seguro da capacidade de ele aguentar. A junta da cabeça foi subsituída e a deformação que houve do sobreaquecimento estava muito perto do limite máximo da Yanmar.
Depois era preciso acrescentar água com regularidade. Não me preocupei muito. Há velas e tempo. Fomos andando.

Numa noite, acho que na primeira apanhamos uma squal bruta. De dia dá para as ver chegar. De noite, sei agora, sente-se. Iamos com todo o pano içado. Vou ao leme e estamos sem piloto automático. O Chris a lutar entre ir lá a baixo verificar o nível de água e tentar não enjoar. É duro. Sempre enjoou intensamente e mesmo assim aceita vir neste tipo de coisas. Não pode baixar mais que o estritamente necessário. Tudo o que é refeições, vhf ou o que implique entrar no interior do barco, faço eu.

Sinto o vento a rodar 90 e depois 180º. A temperatura baixa e o vento sobe. Percebo institamente que algo vem aí. Digo ao Chris: Vem aí uma squal. Vamos baixar já as velas. Ele não acredita em mim. Tarda em fazer as coisas. Lentamente. Recolhemos a genoa. Quando termina a squal está em cima de nós. Chove brutalmente, o vento carrega cada vez mais e começam os relâmpagos em cima de nós. Sempre a crescer. Ele está num misto de confuso e surpreendido. Passo a ser capitão. Ordeno que venha logo para o leme e aproe ao vento que não tem direcção precisa. Vou ao mastro baixar a vela grande. Não consegue aproar. a vela tarda em baixar. Um relampago que ainda hoje não sei se acertou ligeiramente ou totalmente o barco ou não, cai em cima de nós. Estava no momento a olhar para cima. Deixo de ver e fica tudo escuro. Ponho-me de joelhos para não perder o equilibrio a pensar "estou fodido".
Tarda muito tempo (talvez minutos talvez segundos) até voltar a ver alguma coisa. Só oiço o Chris a perguntar o que se passa naquele seu estranho brasileiro de suiço que vive nos states. Não lhe quero dizer até eu próprio perceber. Só digo Não vejo nada. Espera. Mantem rumo, está tudo bem. Tem atenção ao Karl.
Volto a ver. Sinto alivio e tenho as pernas a querer tremer. Acabo de baixar a vela. Subo os dois apoios do mastro para agarrar a adriça, com medo que venha outro relâmpago.Não param de cair ali ao lado. Prendo a vela o melhor que posso. Luto entre a vontade de a deixar mais ou menos presa e a consciência que isso pode implicar mais tarde ter de voltar a fazê-lo se se soltar.

Volto para o leme. Tento encontrar o rumo naquele caos. A agulha roda como uma louca. Com a chuva a visibilidade é perto de zero. Felizmente naquele momento estava a fazer um dos meus bordos para terra e não estavamos em cima do Karl. Mas andámos muito tempo não sei em que rumo e às voltas. Não fazia ideia se nos tinhamos aproximado dele ou não. Tento ver as suas luzes na escuridão e no meio da cortina de chuva. Não consigo. O Chris está a tremer. De frio e descarga de adrenalina. Estavamos os dois encharcados como se tivessemos saido do mar. E a squal continua, o mar cresce, a chuva, vento e relâmpagos não param.
 Apercebo que sou eu que tenho que mostrar segurança no que faço e manter a calma. E faço-o. Não sei se pouco ou muito tempo depois passa. Para nós foi muito. Da mesma maneira que chegou foi-se embora. Fica alguma chuva enquanto o vento cai e os relâmpagos começam a afastar-se. Estou preocupado com a Nike e Dimitrius. Tenho ideia que iam também de pano içado a última vez que os tinha visto.Não são experientes neste tipo de coisas. O barco deles é mais velho. E há sempre os relâmpagos. Passo o leme ao Chris e vou ao VHF chamá-los. Não respondem. É normal as regras dizem para não se usar aquilo quando há relâmpagos. Quando tudo passa, oiço-os chamarem. Vejo as luzes ao longe. Afastámo-nos muito um do outro. Está tudo bem.

 Mudamos de roupa, faço um café e algo para comermos. Merecemos. Continuamos a navegar. Pouco depois o Karl contacta-nos. Está com problemas no motor. Falha e vai a baixo. Liga-se, aguenta um pouco e volta a morrer. Faço de ponte entre o Chris e a Nike e Dimitrius no VHF. Ele vai fazendo as perguntas e dando as sugestões de forma técnica, eu transmito-lhes o melhor possivel e tento transmitir-lhe a resposta. O melhor possível. De um lado um suiço americano a falar um brasileiro estranho que percebe tudo de mecânica, do outro uns alemães e falarem inglês bom mas sempre com aquele sotaque Allô, Allô que não percebem quase nada de mecânica e um português a tentar transmitir o que cada lado diz que ainda percebe menos de mecânica que os alemães. Interessante.

Continuamos a navegar mais umas horas a velocidade caracol. acompanhado-os enquanto eles desmontam coisas e voltam a montar. Regularmente ficam sem motor. Tentamos encontrar soluções. Nada serve. O depósito de combustivel do Karl deve estar sujo e os balanços da Squal fez levantar a sujidade. Tentam ir à vela. Não dá. O vento morre. Já não me lembro bem mas estamos entre 80 e 100 milhas de Bocas. A umas 40 ou 60 de Escudo de Veraguas, uma ilha deserta que fica mais ou menos no caminho, um pouco fora de rumo.
Há que tomar uma decisão: Voltar para Shelter Bay ou seguir caminho. Se estivessemos sózinhos não tinha duvida. Mesmo que o nosso motor morresse tinhamos tempo para ir à vela. Era uma questão de poupar motor para podermos entrar na boca. Já fiz umas 700 milhas com um motor a morrer e à vela comentre 0 e 7 nós de vento. Nada de novo aqui. Com eles a minha vontade mantém-se. No pior cenário reboco-os. Quanto mais não seja até Escudo de Veraguas onde ficariam fundeados.
O Luís devia estar a passar mais tarde ou mais cedo com o Helena S. Ele tem jerricans de combustivel que eles poderiam usar em alternativa ao depósito sujo. É uma questão de aguentar. O chris não acredita que o conseguiriamos encontrar no mar. Eu tenho quase a certeza que sim. O rumo é directo e a menos que haja vento suficiente para compensar a andar a fazer bordos longos, ele vai ter que passar ali perto. É uma linha recta. Volta a pesar a minha escola. Agradeço-a.

Não há segurança e eu não posso em consciência garantir que vai correr tudo bem. Nem no Arctic posso confiar que vai correr tudo bem e aguenta rebocar outro barco. Nem sequer temos a certeza que ele sózinho aguenta bem. Só experimentando.
Depois há os timmings de vôo. Chris com um vôo dali a uns dias. Dimitrius também. Ir em frente implica quase de certeza perderem os vôos.
Decidimos voltar para trás. É uma decisão dificil para todos. Há frustação. E responsabilidade.
Voltamos. Ao fim do dia, a cerca de 40 milhas de maldita Shelter Bay, o Karl morre totalmente. Não há vento nem motor.
Faço o primeiro reboque da minha vida. Vou lá a baixo ver os manuais, estudo com o Chris como fazemos a manobra e transmitimos a Nike o que há a fazer. Correu de forma exemplar.
Agora sou quase capitão de dois veleiros.
Antes de anoitecer vejo o que julgo ser Helena S. a passar no sentido contrário.Longe mas visivel. Julgo não, tenho quase a certeza. Podemos estar safos. Chamo insistentemente pelo VHF: Helena S., Kiki, Luís. Berro uma e outra vez. Nada do outro lado.
Imagino-o a ouvir musica alta, a fumar um charuto, a saborear o mar e a pensar nos seus textos ou livros ou mulheres, ou tudo, com o rádio desligado porque ali não há ninguém mesmo. Só nós.

Chegamos na madrugada seguinte. A fazer tempo para o nascer do sol. Contornamos o molhe, passamos a boca da barra, coloco o Dinghy na água, soltamos o Karl e eles tentma manter o motor a funcionar. O chris vai ao leme atrás no arctic. Eu acompanho-os até à marina de dinghy para ajudar nas manobras de atracar e estar ali para o caso de ficarem sem motor.
De novo tudo exemplar.
Volto para o Arctic. Atracamos.
Estou exausto. Estamos exaustos.
Realizados.
E depois vem a preocupação. Deviamos estar em Bocas dia 20.
O Chris tem de se ir embora e eu estou sem tripulação.
Agora há que lidar com isso.

M.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Shelter Bay - Bocas del toro I

Ainda em Shelter Bay, tive o prazer de conhecer a Nike.
Uma alemã de trinta e picos que achou boa ideia deixar o trabalho, comprar um chasso de um veleiro de aço por tuta e meia que estava meio ao abandono aqui no Panamá, formar-se como marinheira, pôr o barco navegável e navegar em solitário algures até ao Chile e depois Pacifico.

No processo arranjou uns patrocinios, faz um video semanal para publicar e angariar mais patrocinios. O projecto chama-se "white spot pirates" e a série de videos "Untie the lines".
Ainda que não me reveja no conceito e exposição pessoal, com as questões menos perfeitas de marketing que lhe estão associadas,  fascina-me sempre assistir a alguém a concretizar sonhos. E este é bonito e bastante ambicioso.

O Luís trouxe a Nike a bordo para jantar com mais uma malta convidada que andava por ali perdida (em Shelter Bay) que se bem me recordo consistia em um casal de irmãos que viajavam de mota desde o Canadá, um outro motoqueiro também ali perdido todos a ver se encontravam barco para chegar a Cartagena (não há estrada entre o Panamá e a Colombia, só avião ou barco), o Chris e eu e mais não sei quem. Foi o tal do arroz de polvo. Ou pensando bem foi o jantar antes desse, só nós e ela. Já não me lembro.
Nesse mesmo jantar, mais tarde e depois de uma conversa animada e regada de pessoas que têm em comum o mar e o facto de estarem ali perdidas, conheci o Dimitrios. Amigo de longa data da Nike de descendência grega e que resolveu vir passar umas férias a ajudar na recuperação e preparação do barco, acabado de chegar da alemanha a tempo de comer os restos e beber uns copos .
Estes dois cromos passaram a fazer parte dos jantares a bordo do Arctic. Não tinham fogão a funcionar e nós precisávamos de pessoas de fora que nos quebrassem a rotina e intensidade de convivio e trabalho. Era um bom acordo. E foram mais importantes para mim do que alguma vez iria supor.
Foram horas e horas de conversas e palhaçada. Copos e descontração. Partilha de projectos. Dois iniciantes de skipper.

Quando finalmente consegui ter tudo pronto e o OK para saír de Shelter Bay, combinámos ir juntos, os dois barcos, Arctic e Karl, eu e o Chris e a Nike e o Dimitrios. Eles anteciparam a partida para terem a segurança de navegarem com apoio. Nós tinhamos de estar em Bocas o mais tardar no dia 20. São 140 milhas. Contra vento, mar e corrente. Era dia 14 de Setembro.

Foi a minha primeira viagem como Skipper. Portei-me bem. Tomei decisões correctas. Fiz bordos longos completamente fora de rumo para encontrar o vento. Encontrei-o e aproveitei-o. É a vantagem de navegar com outro barco. Percebemos se arriscámos bem enquanto eles mantêm o rumo certo e quando nos reencontramos eu estou mais à frente. Aqui pesam a escola e milhas que tive de regata e entregas de veleiros.
O Arctic, apesar de ser um chaço (ou chasso nunca sei), surpreende-me a navegar à vela.

M.