terça-feira, 22 de setembro de 2009

Encontros - A White Fleet

Ainda pensei adaptar isto num texto meu.
Mas não o saberia fazer sem se perder algo ou haver qualquer acréscimo que significasse alguma coisa. Fica aqui (grande) parte da entrevista que falei.


Na Primavera de 1966,o canadiano Wayne Ralph fotografou um grupo de pescadores portugueses cujo navio bacalhoeiro estava atracado no porto de St. John’s,capital da Terra Nova.No final de 2008,essas fotografias foram publicadas na nm e um desses homens descobriu-se nelas com 18 anos.No Verão de 2009,Wayne Ralph veio a Portugal expor essas imagens a convite do Museu Marítimo de Ílhavo e no dia da inauguração reencontrou-se com o pescador.Aqui se narra esse reencontro,numa conversa em que foi também questão a história comum de dois países unidos pelo bacalhau.

Contámos parte desta história na NM de 14 de Dezembro de 2008, quando publicámos algumas das fotos que fez dos pescadores portugueses no porto de St. John’s, capital da Terra Nova, em 1966. Um deles foi reconhecido por um parente, que lhe ofereceu a revista pelo Natal, provocando uma vaga de memórias e emoções. Quer contar o que aconteceu entretanto?

Em Janeiro deste ano recebi um e-mail do filho desse ex-pescador dizendo-me que o pai se tinha visto na revista (nessas imagens ele tinha 17 anos) e chorado (o que o filho nunca o vira fazer). Nesse e-mail o pai agradecia-me por tê-lo fotografado. Eu ignorava até esse momento o nome desse pescador, como os dos outros que fotografei. O próprio nome do navio em que seguiam apenas o soube por essa altura, depois de digitalizar as imagens e de as ampliar de modo a tentar colher elementos identificativos. António (o pescador de que temos estado a falar) era o elemento mais novo da tripulação do Dom Denis nessa campanha.

Tínhamos sensivelmente a mesma idade quando o fotografei no porto de St. John’s. Eu morava perto do porto, e nesse dia andava por ali a passear.
(...)

Nessa altura, quando os portugueses faziam parte da paisagem humana de St. John’s, recorda- se ou não de ser capaz de distingui-los dos outros pescadores?

Os navios dos portugueses eram diferentes de todos os outros, eram os únicos que eram veleiros, de três ou quatro mastros, enormes, com aquelas velas lindíssimas e aquele charme que os outros não tinham. E eram brancos, por causa da Segunda Grande Guerra, o que eu não sabia à época [os navios bacalhoeiros portugueses foram mandados pintar de branco pelo Estado-Maior Naval na sequência de ataques alemães a lugres da nação «neutral» no alto-mar]. A White Fleet era única. Podíamos ver esses navios quando o tempo estava mau, pois eles procuravam abrigo no porto, onde ficavam até o tempo melhorar. Quando a White Fleet chegava íamos todos ver os seus navios. Da minha secretária da escola conseguia vê-los pela janela.
(...)
António, o ex-pescador que agora reencontrei, foi para o mar com 8 anos. Na Terra Nova há muitas pessoas como ele, pessoas da minha geração que não estudaram e que foram para o mar ainda quase crianças. Tal como os portugueses que eu via a jogar futebol em St. John’s, e que ganhavam sempre os jogos, eram muito bons jogadores.

Como os distinguia dos espanhóis ou dos marroquinos, que também jogavam futebol quando estavam atracados?

Os portugueses tinham roupas distintivas, feitas à mão, os pescadores da Frota Branca vestiam-se de maneira diferente dos outros.
E isso é visível também nas minhas fotos de 1966 – numa delas há um conjunto de homens vestidos com roupas compradas em lojas, blusões como os dos homens da marinha mercante. Os pescadores portugueses não vestiam roupas dessas. A probabilidade de esses homens serem portugueses era baixa.

Como explica as relações tão excepcionalmente amistosas entre os portugueses da Frota Branca e os seus conterrâneos?

Quando eu era miúdo e via os portugueses sempre por ali, no porto de St. John’s, eu sabia que tinham sido eles a encontrar-nos, na escola aprendi que o primeiro descobridor a encontrar a Terra Nova foi Gaspar Corte-Real, um português. Por outro lado, sempre foi muito claro para mim que os portugueses que paravam em St. John’s eram os mais pobres de todos. Eram sempre avistados a andar pelas ruas em grupos, olhando para as montras das lojas, hesitando em comprar.
Tal como o rapaz que eu descrevi na história publicada em Dezembro passado, que não tinha dinheiro para comer um banana-split e ficou a ver-me comer o meu. Os portugueses tinham quando muito dinheiro para beber uma cerveja, mas não para pagar uma refeição ou uma sobremesa cara. Penso que sempre houve um olhar compreensivo relativamente a esses constrangimentos dos portugueses, que de resto eram muito bem parecidos e tinham muito sucesso com as raparigas. Sabíamos, ainda, que os portugueses eram os que trabalhavam com menos condições. A pesca do bacalhau era dura para todos, mas para os portugueses era-o ainda mais. Isso fazia deles heróis absolutos, tal como vem explicitado no famoso livro de Alan Villiers [A Campanhado Argus, uma edição da Cavalo de Ferro].

(...)

Voltemos a esse encontro inacreditável entre si e o pescador que fotografou na Terra Nova em 1966. Quais são os seus significados, e os desta sua vinda a Portugal?

Posto de uma forma simples: passei anos e anos a pensar que devia ter enviado as fotografias a esse outro pescador, o homem que era de Aveiro e me deu a sua morada. Sempre me senti um pouco culpado por não o ter feito, senti remorsos por não ter sido mais consequente. Quando o filho de António me disse que o pai gostaria muito de me reencontrar, fiquei a pensar que também eu queria muito esse reencontro. Mas não sabia onde poderia vir a ter lugar. Foi então que em meados de Junho passado recebi um e-maildo director do Museu Marítimo de Ílhavo, Álvaro Garrido, a convidar-me para expor em Ílhavo essas fotografias tiradas em 1966. Decidi vir, não só para a inauguração da exposição, mas também para reencontrar esse antigo pescador, o que aconteceu no dia 8 de Agosto, no museu. António apareceu com toda a sua família. Foi um momento inesquecível. Até Janeiro passado eu nem sequer sabia o nome dele, ele era apenas alguém que eu fotografara 43 anos antes em St. John’s, mas que representava todos os portugueses que eu conhecera durante a minha infância e juventude na Terra Nova. Ele não fala inglês e eu não falo português, mas isso não teve importância alguma.

Sei que depois passou alguns dias no local onde vive o antigo pescador e a sua família.

Passei três dias com a família de António. Tive oportunidade de conhecer outras pessoas, antigos pescadores nomeadamente, (...) O que mais me impressionou foi ver o quanto guardam St. John’s no coração. Todos eles ficam muito sentimentais quando falam desses tempos na Terra Nova. Lembram de forma muito vívida e emotiva essa época em que passavam por vezes vários dias em St. John’s.

Para eles você é a representação da Terra Nova e do seu povo, que os acarinhou ao longo de todos esses anos de campanhas bacalhoeiras.

Exactamente. Alguns ficaram com os olhos cheios de lágrimas, e começaram a falar desses outros homens nas fotografias, indagando o que lhes teria acontecido, quem estaria ainda vivo.

Sei que alguns desses pescadores retratados nas suas fotografias de 1966 foram reconhecidos e que alguns são da mesma zona. Porque não os encontrou?

Creio que não estavam interessados nesse reencontro.

Talvez queiram esquecer. Há uma memória recalcada desses tempos, seguramente devido à sua dureza. Tal como acontece com combatentes da guerra colonial.

Penso que há traumas associados a essas longas viagens. Para António foi muito emotivo, houve uma quantidade impressionante de memórias que emergiram. Talvez esses outros homens não quisessem vivenciar isso. Talvez queiram esquecer, sim. Falei com um capitão aposentado, um homem com uma grande experiência, que começou nos dóris, e ele reafirmou-me a dureza dessas pescarias. António contou-me que quando estavam em St. John’s e chovia se lavavam debaixo dessa chuva. Nos navios, havia pouca água, e eles lavavam-se numa pequena quantidade de água, que servia também para fazerem a barba, e que no final bebiam! António contou-me que, quando estavam em St. John’s, por vezes iam ao Hotel Newfoundland, que era um hotel para homens de negócios, um lugar caro e onde havia um código de indumentária. Os portugueses por vezes iam lá beber uma cerveja, de gravata e com as suas melhores roupas, com os seus fatos a cheirar a naftalina, e bebiam uma cerveja que faziam durar o serão todo.

(...)

Essa questão identitária é um problema global. A questão hoje é a de tentar perceber de que modo vão sobreviver as diferentes culturas no mundo globalizado.

Sim, concordo, mas que cultura estamos entretanto a construir? Que mundo vai ser o dos nossos filhos e netos? Se a adversidade forma o carácter, que pessoas vão ser? Se as novas gerações não tiverem nada contra o que lutar, se não tiverem desafios, como poderão ter iniciativa? Como poderão ser capazes de improvisar? Conhecerão algum dia a satisfação de se verem capazes de se ultrapassarem e se surpreenderem a si mesmos? A geração de António cresceu a duvidar de tudo: do navio, do tempo, do mar, dos outros homens, a dureza da vida levava-os a duvidar sistematicamente de tudo, e daí os pescadores com quem me encontrei no outro dia duvidarem das minhas fotografias. António disse-me que pensa que há da parte deles uma espécie de cepticismo fundamental em relação a tudo.

(...)

Mas o vosso país surpreendeu- me, pensei que fosse mais rural, menos desenvolvido. Em 12 dias descobri por exemplo que vocês têm um sistema de telecomunicações muito mais sofisticado do que a nosso. Achei incrível poder comprar um telemóvel tão bom por tão pouco dinheiro. A rede de comboios também me surpreendeu, e a vossa nova arquitectura, um modernismo de que não estava à espera.

Não encontrei em Portugal o mundo que conhecia através da Frota Branca.

Há uma coisa que achei estranha: não vejo sinais do mar na vossa cultura, como se o mar tivesse deixado de interessar-vos. E não estou a falar das praias, que vi apinhadas de gente.«


In Notícias Magazine n.º 903 de 13.09.2009, Diário de Noticias n.º 51295

Reportagem original aqui

Entrevista completa, aqui

Exposição no Museu Marítimo de Ílhavo

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Há uma coisa que achei estranha: não vejo sinais do mar na vossa cultura, como se o mar tivesse deixado de interessar-vos. E não estou a falar das praias, que vi apinhadas de gente.

M.