quinta-feira, 24 de maio de 2012

Malta - O resto.


O resto, bom. Foi estranho.

O mar manteve-se partido da tempestade mais um dia. Ondas desencontradas, incertas e mal humoradas mas a acalmarem com o passar do tempo.

Percebemos entretanto o que se passava com o piloto automático e leme. Uma cena qualquer do hidráulico que não sei explicar muito bem mas que se resumia a não compensar para um dos lados. E o piloto não sabia lidar com isso. Nós sabíamos um pouco mais mas não muito mais. Era uma questão de tentar levar o mais a direito possível. O motor deu-lhe um chelique qualquer e não voltou a funcionar como deve ser. Começou a falhar depois da tempestade e essencialmente em cada 5 segundos ia quase a baixo e voltava a tentar acelerar, o que garantia a fabulosa velocidade de 3 ou, nos momentos de loucura, 4 nós. Para se ter uma ideia 3 nós é a velocidade máxima em que se navega nas marinas. E o vento caiu. Demasiado.

O P. passou uma data de horas enfiado no buraco do motor, sempre que havia um pouco de vento para irmos à vela, a desmontar aquilo tudo para ver se descobria o problema. Fiquei a perceber um pouco de mecânica com estes exercícios práticos. Como havia pouco vento e motor, o piloto não respondia bem por isso fiz também uma data de horas de leme e navegação à reagata, ou seja atentamente a aproveitar o melhor possível as bufas de vento, enquanto só via os pés do P. que estava enfiado no buraco do motor.

De resto, ia-se naquele tuc tuc tuc podre e arrítmico por ali fora. Valeu um número infinito de golfinhos que inúmeras vezes nos visitaram e acompanharam. Pode ser que estivessem a gozar connosco e espalharam pelas redondezas que valia a pena visitar-nos. Prefiro pensar que estavam solidários. Ou sentiram-se atraídos pelos barulhos estranhos do veleiro no qual, para além do motor, se incluía o baque-baque do patilhão (rebatível) que acontecia porque na doca seca alguém se esqueceu de pôr os calços de madeira que evitariam que balançasse.

Não se descobriu o problema no motor nem se conseguiu arranjar o leme. Rumámos a Cagliari, Sardenha para reparações. A dado momento conseguimos ter rede para darmos notícias para casa e o dono do barco. Percebemos que estava tudo um bocado em pânico por já terem passado demasiados dias sem notícias. Achavam que estaríamos a chegar a Malta por aquela altura. O dono do barco já tinha um mail preparado para enviar às diferentes capitanias e lançar um alerta à nossa procura.

Serenadas as hostes lá na terra, dei um mergulho retemperador no mediterrâneo que ainda não tinha a temperatura quente que conheço mas que soube pela vida. Bebemos uma cerveja para celebrar o fim daquele etapa, depois outra e mais umas quantas e fizemos um belo jantar que comemos cá fora, com a uma garrafa de tinto que fez todo o sentido abrir naquele momento. Ao anoitecer estávamos a umas 20 milhas de cagliari. Ou menos. Atracámos na marina já dia alto, para o que ajudou ter desaparecido o vento (um cliché quando chegamos a algum lado à vela) e passada a barra, por ser noite, nos termos enganado e ido para o lado do porto em vez da marina. É que a plotter não tinha as cartas do mediterrâneo, as cartas em papel não têm esse nível de detalhe e não sacámos essa informação da net quando saímos. Não é fácil entrar num porto desconhecido à noite. O motor parecia que ia dar o peido mestre a qualquer momento e chegámos a pensar fazer turnos dentro da barra. Mantinha-se mesmo assim o sentido de humor. A alternativa era desatar à chapada um com o outro ou amarrar aquela barco amaldiçoado a qualquer coisa e lixarmo-nos para aquilo tudo.

O armador tinha marcado um lugar na marina para nós e pedido um mecânico. Fomos a terra beber um café e tratar das formalidades. Depois descansar enquanto o mecânico não vinha. O P. ficou a dormir. Eu dormi um pouco, calcei o chinelo e fui perder-me para o centro da cidade. Voltei ao barco à hora marcada. O mecânico só podia no dia a seguir. Duche retemperador, jantar obscenamente caro que achámos que o armador nos devia num restaurante ali perto. Um dono de restaurante impecável que nos acolheu e serviu uma data de rodadas por conta da casa. Cafés e limoncello’s uns atrás dos outros na esplanada. Apresentam-me algo ainda melhor que limoncello: o Mirto. Fico fã e insisto em provar várias vezes para confirmar. Combinamos voltar na manhã seguinte para levarmos pão fresco na viagem, água e duas garrafas do que andámos a beber.

O capitão volta para o barco. Não consegue descontrair enquanto não tiver o motor arranjado e perceber o que é. Lembra-se de numa situação semelhante um mecânico uma vez lhe dizer que o problema era falta de juntas. Ele pergunta: juntas? O mecânico confirma: Sim. Juntas essa merda toda e jogas fora.

Eu vou perder-me nos cantos escuros e imprevistos da noite de Cagliari. Volto de manhã. Satisfeito e cansado.

O mecânico no dia a seguir também não vem à hora marcada. Diz que só á tarde. O P. irrita-se e reinicia pela enésima vez desmontar o motor. Quando acordo acha que conseguiu resolver o problema. Trabalha certinho e manso. Óptimo. Vou buscar as provisões ao restaurante, beber um último café, despedir-me daquela malta que nos acolheu bem, tomar um duche e voltar para o barco. Largamos com optimismo. É 6ª feira ainda com bastante dia pela frente. Com sorte, a motor, chegamos no sábado à noite a Malta. Nada mau.

O vento está bom, 20 nós de popa. O motor também. Içamos velas e voltamos a ter o prazer de fazer médias acima de 5 nós. Durou pouco. Umas duas ou 3 horas. Ainda com terra à vista o motor falha. Depois o tal vau que nunca mais nos lembrámos partiu-se de vez. O brandal estava solto e o vau ali pendurado. Desanimamos. Decidimos voltar para trás. O vento carrega só para chatear. 25 nós vento pela proa mais corrente, só de genoa e motor soluçante. Ah, e a plotter deixou de marcar a posição de GPS. Atracamos na marina a passar das 8 da noite. Jantamos a bordo. O capitão fica a bordo. Eu volto às ruas de cagliari, desta vez num registo mais calmo. Volto a um bar onde tinha estado na véspera. O dono, um porreiro, vê-me e pergunta-me: hey! Não devias estar a caminho de Malta? Sorri e disse que pelos vistos Cagliari quer-me aqui mais uma noite. Coisa que não me chateia nada. Não me deixou pagar nada e isso soube bem. Ficou prometido que se tivesse lá na noite de sábado, pagaria eu as rodadas.

Voltei a horas decentes ao barco. Não só por vontade mas porque estava na época de uma qualquer coisa religiosa importante na ilha que envolvia passear um santo pelas terras, sendo que 6ª feira era o último dia e o dia de regresso do mesmo a Cagliari. Havia um certo aroma de conservadorismo no ar e a noite estava calma. Era uma boa noite para dormir.

De manhã cedo disseram-nos: “não há mecânicos ao sábado”. Olhámos um para o outro e pensamos… ok. Sábado e domingo aqui, 2ª feira sabemos lá se o mecânico aparece ou se existe mesmo essa figura mítica. Decidimos arranjar o brandal e vau e partir. Ao som de Bandarra e depois Jorge Palma que berram do meu portátil sobe-se ao mastro, desmonta-se aquilo, o P., que é uma espécie de Macgiver, inventa ali uma peça de encaixe elaborada e eficaz, volta-se a montar a coisa e dá-se carga como deve ser nos brandais, coisa que devíamos ter feito antes de sairmos de Portugal, culpa e negligência tanto de quem fez a manutenção do barco e nossa por não o termos confirmado. Aproveitamos e fazemos outros arranjos secundários. O motor nem lhe mexemos.

Estamos o dia todo naquilo. Comemos, tomamos banho, bebemos de novo o último café e ao fim da tarde de sábado largamos com a chuva a cair. O motor não demora a voltar ao seu ritmo mas agora ao menos podiamos ir á vela. O piloto automático também mostra má cara a maior parte do tempo

Chegamos a Malta a meio da manhã de 4ª feira, já com o nosso vôo de regresso perdido.
 Depois de duas noites de relâmpagos e trovoada, uma das quais em cima de nós onde amaldiçoei o leme de cada vez que tinha de vir cá fora ajustar o rumo e irritei-me a sério com o barco. Borrei-me um bocado e a dado momento não queria saber se íamos na direcção da Tunísia ou China enquanto os relâmpagos não saíssem dali.
Depois de um momento surreal em que ía eu ao leme com 4 nós de vento, começam a entrar 7 a 10 nós de vento, vou todo contente içar a vela grande e abrir a genoa a pensar: agora é que é! O vento vinha com uma nuvem baixa com aspecto de poucos amigos. E agora é que era: Em menos de 10 minutos instalam-se confortavelmente 40 nós. Chamo skipper e rizamos as velas. Dura uma hora naquilo, depois acalma e fica-se pelos 20 a 25.
Depois de uma manhã inteira a percorrer a costa com 1 a 2 nós de vento para chegarmos à marina.

Foi um transporte pouco descontraído. Com pouco descanso. Com poucos momentos de descontração e leitura, fosse pelo vento em excesso ou pela falta dele. Foi uma viagem estranha. Aprendi bastante. Venho com calos nas mãos de tantas horas ao leme.Acho que cresci.

É um texto demasiado longo, eu sei. Mas a viagem também o foi.
Ainda não sei se o faria de novo. Acho que sim.

M.