quinta-feira, 24 de maio de 2012

Malta - Tempestade Imperfeita

Não sei porque ando a adiar escrever sobre a viagem ou mesmo o resto. Acho que ainda estou a digerir a coisa. E com mais vontade de fazer coisas do que propriamente falar delas. De qualquer maneira foi isto:


Percurso sem história até Gibraltar, onde parámos a meio da manhã para comprar tabaco (muito), beber um café, comer um gelado, atestar o depósito do veleiro mais 6 jerricans que nos deveriam garantir a chegada a Malta sem escalas. Até lá deu para perceber que o veleiro era mesmo um chaço mas o motor aguentava-se bem e garantia uma média de 6 ou 7 nós o que era mais que suficiente. O piloto automático nem sempre se aguentava bem mas não ligámos muito. Havia tempo para ver o que se passava.

Estivemos menos de duas horas em Gibraltar, espreitámos as previsões para os próximos dias que foram confirmadas pelo contacto que tínhamos em terra (lá na terra): carregava um bocado de vento (20 a 30 nós) nos dois ou três dias seguintes e depois desaparecia o vento e o pouco que havia seria de proa. Como nos disseram, “é aproveitar agora” para fazer milhas.

Já estava mais recuperado dos estragos de uma deliciosa noite de despedida em terra. E optimista. O ambiente a bordo estava bom, tínhamos despachado uma cabeça de leitão assado à largada, os turnos eram longos e descontraídos e o mar era nosso.

Originalmente tínhamos pensado subir e seguir num arco ao largo de Ibiza, Las Palmas, Sardenha e Sicília, tanto para evitar a costa no norte de África como para estarmos mais perto da costa “civilizada” do que da outra caso acontecesse algo que nos obrigasse a ir a terra. Não foi nada disso que aconteceu. O vento e mar estavam favoráveis, havia que aproveitar o vento que vinha, o motor não gastava muito e assim decidimos ir directamente para Malta num rumo a apontar algures entre a Sardenha e Sicília e logo se via se precisávamos de parar numa destas para abastecer. Tinha a esperança que sim.

Na manhã do dia seguinte o horizonte estava estranho. Pensei: isto vai carregar. Havia algum vento e mar com vaga pequena, dava para ir navegando bem entre motor e vela. A meio do dia o vento fixava-se nos 20 a 25 nós. Um pouco mais tarde nos 25 a 35. O mar crescia com o passar das horas. Sempre a favor, com ondas de 2 a 4 m. Íamos a surfar. O piloto automático já não se aguentava e o leme tinha que ir na mão. Ia eu num misto de medo e excita da adrenalina. O vento começa a tocar nos 40 nós. Desço uma onda a 10 nós e qualquer coisa de velocidade que nunca mais acabava mas mesmo assim não tive tempo de ver o quanto era o qualquer coisa. Começava a sentir-me desconfortável porque o barco tinha reacções estranhas e eu não o controlava bem. Era altura de passar o leme a quem percebe do assunto. Tínhamos recolhido a genoa. Mas estávamos contentes. Afinal as previsões batiam certo e assim chegávamos a Malta num instante. Eventualmente em menos de uma semana, a tempo de passar lá o fim de semana. O voo de regresso seria só na 4ª feira seguinte. Perfeito.

Numa cambadela parte-se uma alça da retranca. Muda-se a escota para a outra. Esta parte-se também. Improvisa-se uma alça com um cabo. Pelo meio rasga-se um pouco a vela grande. Nada de grave. Estava só “esfuracada” mas sem abrir mais. Mais para o fim da tarde as refregas tocavam cada vez mais vezes nos 40 nós. Tudo bem. Aguenta-se bem, o skipper é experiente e o barco ainda não se queixou. E mais tarde ou mais cedo aquilo haveria de passar. Provavelmente mais cedo. O skipper também não percebe bem algumas reacções do veleiro. Pode ser pano a mais. Não temos o rizo da grande passado. Já se vê. Vamos brincado com o acontece.

Depois de outra cambadela ouve-se um clack, vejo-o a olhar para cima com um ar preocupado e a dizer “acho que vamos ter problemas com o mastro”. O vau de bombordo estava meio partido e a querer soltar-se. Camba-se a grande outra vez para não forçar e ficamos a olhar para aquilo. Partir-se um mastro é grave e é coisa que não quero experimentar. Decidimos arrear a grande. É sempre nessa altura que o vento carrega e as ondas crescem. Estava estável nos 40 nós. Com aquele vento e mar ir ao mastro arrear a vela é coisa para não ser uma experiência agradável. Espera-se que acalme um pouco, aproa-se o barco ao vento e às ondas, faz-se a coisa com a calma e concentração possível e não corre mal. Fuma-se um cigarro a seguir com uma mini para descontrair o coração que entretanto disparou.

O vento começa a tocar nos 45 nós com frequência e as ondas não param de crescer. Espera-nos uma noite longa. A partir daí sento-me ao pé do skipper e dedico-me às funções “apoio moral” e “apoio técnico” que consiste basicamente em acender cigarros, abrir cervejas, ir buscar comida e água, afinar a genoa, ir lá dentro buscar comida, ver o nível de água nos porões, apanhar as coisas que vão caindo das prateleiras com as inclinações repentinas do barco, incluindo um velho portátil que lá estava que fez um voo directo da mesa de cartas para a cozinha, marcar a posição na carta, esperar ordens e dizer parvoíces enquanto ele controla o bicho. Oiço com frequência uma espécie de alarme baixinho que não percebo de onde vem e que o P. não ouve. Começo a achar que ouvir campainhas pode não ser bom sinal. Passado um bocado percebo que o som vem do anemómetro que está ao meu lado e que toca o alarme de cada vez que o vento passa dos 45 nós. Tocou bastantes vezes. Anoitece.

Apanhamos uma onda mais entusiasmada nas costas e pouco depois enfiamos o barco de lado numa outra que trouxe água até ao joelho no poço. Rimo-nos, mudo para a roupa e botas de mar. Pego no leme para o skipper fazer o mesmo e cada segundo que ali estou parece uma eternidade. Supomos que as ondas andam nos 6 a 7 metros mas está escuro, não queremos exagerar e isso não interessa para o efeito. Estão grandes. Devolvo o leme a quem sabe. Só volto a tocar no leme às 2 da manhã, quando o P. já não aguentava mais de dores nos calcanhares e vontade de mijar. Sim, fiquei a saber por experiência própria que o que fica a doer mais a fazer leme num veleiro é a porra dos calcanhares… A dado momento parece que nos estão a espetar agulhas e ali, com certos mares e ventos não há outra opção senão aguentar e ir em pé. Peço-lhe para mijar ali no poço em vez de ir lá dentro e vou tentando gerir o caos. Ele faz-me a vontade, senta-se, descansa um pouco e volta ao leme. Há um momento em que aquilo perde a piada e se pensa: “Esta merda não pára? Não acaba?” Começa-se a pensar que se está mesmo no meio do mediterrâneo, já não vemos nenhum navio há umas horas valentes e que nada indica que o temporal acalme. Antes pelo contrário. E pensa-se e se isto continua um dia. Ou dois. E o mar sempre a crescer? Sabe-se que mais tarde ou mais cedo o cansaço vai vencer o skipper e não se quer ser a opção para ir para o leme já que a probabilidade de fazer asneira é grande. Pensa-se que o cenário já esteve melhor, o skipper com um ar menos preocupado, cada clack vindo do mastro e do estai inquieta, e sente-se pela primeira vez medo que a coisa não corra bem. Começamos a questionar a nós próprios como é que se abre uma balsa e se salta lá para dentro naquele mar. Just in case. Fumam-se cigarros e o silêncio das vozes ocupa espaços cada vez maiores. Deixa-se de ligar às paredes de mar que se formam nas costas do P e que ele não vê. Ali não há merdas, adereços nem blufs e ficamos só o que somos. Pensa-se que para ele seria bem mais fácil e útil ter ali ao lado alguém que se sentisse mais à vontade para ir fazendo turnos ao leme e nesse momento sentimo-nos relativamente inúteis. Amaldiçoa-se a inexperiência. Questiona-se se somos feitos para aquilo.

Depois pensamos que não adianta de nada estar a pensar isso nesse momento. Há um navio que aparece no meio daquele caos, contorna-nos de perto, anda ali um bocado ao nosso lado num rumo parelelo como se a ver se está tudo bem e segue caminho. E saber que ali perto, ao alcance do VHF há um navio que nos viu, parecendo que não mas descansa bastante. Sente-se um sorriso interior e o ambiente alivia um pouco. Rimo-nos de novo.

Aquilo começa a ameaçar acalmar. Não sabemos se vai recuperar o fôlego com o nascer do dia ou se acalma mesmo. O vento baixa lentamente e volta para os 30 a 40 nós. Vou eu para o leme. O P. está exausto. Indica-me a estrela brilhante que aparece de vez em quando entre as nuvens e que lhe serve de guia alinhada com o estai e o mastro. Sigo-a fielmente porque garante que vamos no rumo certo e mais importante de tudo, que vamos com as ondas. Sem nos metermos com elas. Acho que nunca fixei tanto uma coisa. Acho que nunca amei tanto um ponto de luz. Depois de estar ali um bocado ao meu lado P. vai dormir. Antes disso ponho o arnês para me sentir seguro. Volta e meia aparecem não se sabe de onde umas ondas de través que rebentam no barco e baralham tudo. Malditas ondas de lado. São umas cabras com p. Malditas nuvens que insistem em tapar a bendita estrela quando é preciso corrigir rumos. Com as horas tenho mudar de estrelas que Ela está no topo do mastro e já me dói o pescoço. Nunca mais amanhece. Nunca mais baixa o vento para valores civilizados. O barco continua a ter reacções estranhas. E aquilo cansa.

Ganho coragem para acender o primeiro cigarro sozinho. Depois outro. Tento aliviar a tensão em que vou. É um desgaste físico desnecessário. O céu começa a clarear. E já se vêem as ondas e para onde vamos. O sol nasce atrás das nuvens, tudo parece um pouco melhor apesar de a fúria das ondas estar visível, não se saber se é melhor ver ou estarem tapadas no escuro e quer-se acreditar que o pior já passou e não volta.

Passam-se umas horas nisto, resiste-se uma data de vezes à tentação de chamar o P porque não queremos mesmo estar ali mas pensa-se que é melhor aguentar agora para o caso de voltar a carregar ele estar descansado. É um potencial mal menor. E quando não se aguenta mais, berra-se o nome dele para o acordar e vir substituir antes que se faça alguma asneira. O pior já tinha passado.

E vou dormir.



M.