quinta-feira, 31 de maio de 2012

Tenho à minha frente a chávena de café que trago sempre do bar da dona C. para a minha secretária, a largar o aroma de café pelo corredor e sala de baixo que me separam daquele espaço. É um ritual que faço duas vezes ao dia desde que me mudei para este gabinete. De manhã e de tarde entro no edifício, pico o ponto, dirijo-me a aquela divisão que insistem chamar bar da Dona C., peço-lhe o café ao que ela, com mais de 80 anos, pergunta quase sempre se quero “curta ou normal?” porque sabe que gosto de baralhar rotinas. Ponho o açúcar, pago e trago o café para aqui deixando para trás o papaguear de quem ali está. Atravesso o corredor, entro na sala, cumprimento quem cá está, subo as escadas em caracol para a mezanine, Pouso a chávena no lado esquerdo da mesa, largo as tralhas e ligo o computador enquanto mexo lentamente com a colher. Desde que faço isto deixei de beber café a escaldar. É o tempo perfeito para diluir o açúcar e ficar à temperatura perfeita para ser saboreado. Enquanto o bebo, vejo os mails, no caso de ser de manhã vou acordando, organizo as coisas e dou uma vista de olhos nos meus Google readers. É também um tempo bom para aguentar e esperar pelo segundo café (bebido algures na hora seguinte e já ao balcão) para fumar um cigarro, quase sempre sentado ou encostado ao murete de baixo da laranjeira em frente à igreja. Sou um gajo de rituais. Gosto destes rituais.


Mas o que gosto mais dos rituais é o ritual de mudar de rituais quando já os saboreei. E revivê-los de vez em quando. Os meus rituais marcam épocas e estados de espírito concretos. E raramente são os mesmos ao longo dos tempos.


Hoje foi a última vez deste ritual. A Dona C. lamenta a minha saída, diz que gostava que eu ficasse e pergunta se volto. Está morta por saber o que vou fazer quando sair daqui. Pouca gente sabe e já ouvi dizer que andam a fazer apostas. Digo-lhe que não sei mas que ainda nos vemos porque venho visitá-la e beber um café. Ao balcão. Ela diz que se eu voltar daqui a um ano pode já não estar cá. Que é assim mesmo. Mais dia, menos dia deixa de cá estar e que vai servindo os cafés durante o dia e vendendo o pão no mercado ao fim de semana para se manter ocupada e animada enquanto a morte não vem.

Penso nisso enquanto bebo o café. Sei que daqui a um ano pode estar tudo diferente. Sei também que, há semelhança do que se passou nos últimos anos, poderá estar tudo mais ou menos na mesma. E que, há semelhança do que tem acontecido, a haver mudanças aqui, estas raramente são para melhor.

Não quero pensar muito nisso do como serão as coisas daqui a um ano. Logo se vê. Daqui a pouco, antes de fumar e quando o bar estiver vazio vou lá beber mais um café, ao balcão, despedir-me da Dona C. com dois beijos e dizer-lhe um até já. Sendo que esse até já poderá ser até sempre.

Vou despedir-me de algumas pessoas. Outras se as encontrar pelo caminho também me despeço e desejo boa sorte. Outras nem isso porque não me interessam e aqui há demasiada gente para estar a meter tudo no mesmo saco. Há pessoas aqui das quais não me despeço. Sei que farão sempre parte de mim e da minha vida e que mais semana menos semana, mais mês menos mês, ou mais ano menos ano, estaremos a almoçar ou a beber café algures fora daqui. Ou trocar mails sobre o que mudou e não mudou e se a dona C. continua do alto do seu metro e meio e 80 e tal anos, a servir cafés entre protestos e semi-rabugisses.

Logo se vê.